Foto postada por MTéSERGIPE, a fim de ilustrar o presente artigo.
Imagem de arquivo de Paulo Roberto Dantas Brandão.
Publicado originalmente do site do Portal Infonet, em
26/03/2005.
Um usineiro socialista*
Pode um homem moldado pela sociedade patriarcal
representativa da cultura dos engenhos, filho e neto de usineiros, tornar-se
socialista? Mesmo que a resposta seja negativa, quem há de negar que Orlando
Dantas tenha sido a personificação mais bem acabada dessa metamorfose
teoricamente impossível? Dentro de 15 dias, faz 23 anos da morte de Orlando
Vieira Dantas (ele nasceu a 28.9.1900 e morreu a 9.4.1982), um homem
contraditório, polêmico, mas que viveu à frente do seu tempo.
Nascido e criado no cenário atrasado de um engenho
nordestino, e durante toda a vida proprietário de usina de cana-de-açúcar, ele
foi, além de militante socialista, um político nacionalista e, acima de tudo,
um jornalista de posições intransigentes na defesa da economia de Sergipe e quase
sempre radicais contra a ditadura e a opressão. Fez da Gazeta de Sergipe a
trincheira principal para seus embates e um campo aberto para a divulgação das
variadas manifestações da sociedade. Foi, sem medo de errar, o principal nome
da imprensa sergipana no século XX.
"Não se contentou Orlando Dantas na atuação de
empresário progressista e bem sucedido. Buscou caminhos do jornalismo e da
política, agindo de forma destemida e inconformada, denunciando as
arbitrariedades do poder, as injustiças sociais, na defesa de um mundo mais
justo e mais humano", escreveu certa vez a historiadora Maria Thetis
Nunes. Esta e a também professora da UFS Amy Adelina Coutinho de Faria Alves
chegam a considerar Orlando Dantas um cientista social, autor de livros sobre a
vida em engenhos de açúcar, dentre os quais destacam A Vida Patriarcal de
Sergipe. Mas, observam, ele era um usineiro, filho de senhor de engenho, que
viveu com escravos emancipados e carregava raízes profundas da sociedade
patriarcal.
BIOGRAFIA RESUMIDA
Orlando Dantas nasceu no Engenho Palmeira, em Capela, e era
filho de Manoel Corrêa Dantas, que foi presidente de Sergipe (1927-30). Ainda
jovem começou a dirigir a Usina Vassouras, em Divina Pastora, depois Capela.
Antes, em 1927, já demonstrava seus dotes jornalísticos-literários quando
tentou fundar um jornal chamado "Gazeta de Sergipe", mas fracassou.
Em 1929, no governo do pai, já bem relacionado com os ferroviários, durante uma
greve, conseguiu evitar o confronto armado entre aqueles e a polícia. Em 1944,
foi um dos fundadores do jornal O Nordeste e escreveu o livro O Problema
Açucareiro de Sergipe.
Em 1945, participou da fundação da Esquerda Democrática em
Sergipe, pela qual se elegeu deputado estadual constituinte em 1946. Nesse
mandato, teve coragem de protestar contra o fechamento do Partido Comunista. De
1951 a 1955, foi deputado federal pelo Partido Socialista Brasileiro, quando se
notabilizou pelo forte nacionalismo. Não só foi uma das vozes mais ativas na
Câmara pela criação da Petrobras, como foi um dos responsáveis pela instituição
do monopólio estatal do petróleo, só recentemente revogado pelo ex-presidente
Fernando Henrique Cardoso.
Em 1956, fundou a Gazeta Socialista, jornal que enfrentou
forte resistência da elite sergipana, tendo à frente o PSD e até a UDN que ele
ajudou a fundar e na qual esteve abrigada a Esquerda Democrática antes de
transformar-se em PSB. Em 1958, surge a Gazeta de Sergipe, primeiro jornal
diário de Aracaju, após desvincular a Gazeta Socialista do Partido Socialista.
Em 1962, Orlando Dantas apoiou a eleição de Seixas Dória ao governo de Sergipe
e tornou-se um feroz crítico do regime militar depois que o governador foi
deposto. Logo após o golpe, o jornal chegou a ser empastelado.
Mas cometeu sua mais grave contradição política ao filiar-se
à Arena, partido do governo militar. Ibarê Dantas (A Tutela Militar em Sergipe,
1997) registrou assim: "...depois de rejeitar em 1966 o convite para
integrar o MDB, em 1969, no auge das repressões, o velho guerreiro da imprensa
sergipana entrava no partido situacionista com a pretensão de renovar a
política estadual. Em manifesto explicava ao povo sergipano: ‘Escolhi a Arena
(...) por julgar o processo político democrático mais consentâneo com os
divergentes grupos do PSD, UDN e PR e pelas menores resistências às reformas
impostas pela Revolução. Essa reforma possibilitará mudança de mentalidade
política’". Arrepende-se depois e nunca mais filiou-se a outro partido
político. Em 1974, publicou o livro Política de Desenvolvimento de Sergipe. Em
1980, dois anos antes de morrer, num derradeiro ato de coragem, publicou o seu
mais importante livro, A Vida Patriarcal de Sergipe.
VIDA PATRIARCAL
O livro de Orlando Dantas — diga-se, autobiográfico — é
praticamente escrito sobre exemplos da dominação masculina em Sergipe desde o
período colonial. Ele reconstitui a árvore genealógica de sua família,
lembrando que a tradição dos senhores de engenho tem origem na época dos
primeiros portugueses que se instalaram nas terras de Sergipe para explorar a
economia açucareira. Um capítulo é dedicado ao pai do autor, Manoel Correia
Dantas, nascido no engenho Mouco, em Santa Rosa, distrito de Itabaiana, em 22
de dezembro de 1874, cunhado do senador José Luiz Coelho e Campos, que vinha a
ser padrinho de Orlando.
Tentando se colocar no lugar do espectador, Orlando Dantas
comete desvios. Ao contrário do que supunha, o patriarcalismo não é uma
estrutura pretérita. O sociólogo espanhol Manuel Castells (O Poder da
Identidade, 1999) lembra que o "patriarcalismo é uma das estruturas sobre
as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas". A socióloga
feminista Heleieth Saffioti (O Poder do Macho, 1987) chega a estabelecer uma
simbiose do patriarcado com o racismo e o capitalismo que garante a permanência
do primeiro: "...o patriarcado é o mais antigo sistema de
dominação-exploração. Posteriormente, aparece o racismo, quando certos povos se
lançam na conquista de outros, menos preparados para a guerra. Em muitas dessas
conquistas, o sistema de dominação-exploração do homem sobre a mulher foi
estendido aos povos vencidos. Desta sorte, não foi o capitalismo, sistema de
dominação-exploração muitíssimo mais jovem que os outros dois, que ‘inventou’ o
patriarcado e o racismo. (...) Com a emergência do capital, houve a simbiose, a
fusão, entre os três sistemas de dominação-exploração".
Mas, a propósito, o sociólogo francês Pierre Bourdieu (A
Dominação Masculina Revisitada, 1998) observa que qualquer um pode cometer
desvios ao tentar compreender o patriarcado. "Quando tentamos pensar a
dominação masculina, corremos o risco de recorrer ou nos submeter a modos de
pensamento que são, eles próprios, produtos de milênios de dominação masculina.
Queiramos ou não, o analista, homem ou mulher, é parte e parcela do objeto que
tenta compreender. Pois ele ou ela interiorizou, na forma de esquemas
inconscientes de percepção ou apreciação, as estruturas sociais históricas da
lei masculina". O reparo vale como defesa de Orlando Dantas, alguém que
como empresário, político, jornalista ou factótum de sociólogo teve coragem de
remexer nas estruturas sobre as quais se criou e esteve assentado.
* "Orlando Dantas, um usineiro socialista" é o
título de um projeto de pesquisa apresentado ao curso de Mestrado em Sociologia
da Universidade Federal de Sergipe no ano 2000.
Texto reproduzido do site: infonet.com.br/noticias/politica
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